Wednesday, December 13, 2006

Uma leitura de A Peste, de Albert Camus


Albert Camus

Escrevi este ensaio por ocasião do curso de pós-graduação em literatura de que participei. É um pouco longo. Mas, quem se interessar por literatura e tiver um tempinho, está aí. A Peste é um livro apaixonante.


A morte e o elogio da vida

Clayton Melo

O romance A Peste, de Albert Camus, foi interpretado por vários críticos como uma alegoria ao nazismo e, por extensão, a todo regime totalitário. O próprio autor admitia que o conteúdo evidente era a resistência européia a Hitler (1). Não bastasse ter sido preparado durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1947, pela Gallimard, o livro contém alusões à Ocupação ou a ditaduras, como a decretação do estado de sítio na região onde se passa a história ou o fato – provocado justamente pela medida de exceção – de um dos personagens, o jornalista Raymond Rambert, ser proibido de sair da cidade, um símbolo do cerceamento da liberdade de imprensa.

Se o romance pode ler lido pela ótica da resistência política, também é verdade que abre espaço para uma interpretação de cunho filosófico-existencial. A Peste permite a reflexão, por exemplo, sobre como a iminência da morte relembra ao homem sua finitude e o faz agarrar com todas as forças a vida, que teme perder a qualquer momento. A dor, o medo e a solidão gerados pela doença podem resgatar sentimentos até então anestesiados pelo cotidiano, como solidariedade, amor e compaixão. Em outros termos, A Peste mostra que a perspectiva da morte modifica a postura do homem perante o mundo e a si próprio, redefinindo valores e crenças e gerando perdas e ganhos, como o resgate da essência das relações humanas. Além de trazer conceitos que permeiam toda a obra de Camus, o romance se relaciona com as teorias de Heidegger, como a angústia. A aproximação com o autor de Ser e Tempo se estende também à concepção de morte, tema recorrente à filosofia heideggeriana.

A Peste se passa em Oran, pequena cidade da Argélia cuja vida é monótona. Os habitantes vivem para o trabalho e para o acúmulo de riquezas. Seguem meticulosamente a rotina, inclusive nas questões do coração, com casais que vivem juntos por força do hábito. Não há espaço para devaneios amorosos. “Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou reflexão, somos obrigados a amar sem saber” (2)
Subitamente, a normalidade cai por terra quando ratos agonizam por toda a cidade. Logo depois, a morte alcança também os moradores. No início, há um estranhamento com o fenômeno cuja causa ou explicação é desconhecida. Mas com o avanço da doença, o que era uma simples preocupação torna-se motivo de horror generalizado. Ninguém está livre desse inimigo cuja identidade só é reconhecida depois muitos cadáveres: peste bubônica.


Trata-se de um romance que coloca o homem frente à situação-limite que mais o assusta: a morte, não como resultado do ciclo da existência, o que é natural, mas trágica, dolorosa, com sofrimento. E mais: gratuita, um capricho cruel que surge repentinamente, impondo um fim gradual e pavoroso. Dada sua onipresença e força simbólica, a morte é uma personagem nesse livro da separação e da esperança.


Romance e filosofia

Um dos caminhos para melhor entender o ficcionista Camus é analisar o pensamento filosófico do escritor franco-argelino, relacionando as idéias do texto estudado ao restante de sua obra. O ponto de partida dessa investigação é saber que Camus se servia da ficção como meio para expressar reflexões, que exercitou sob a verve do ensaísta – seus dois maiores testamentos filosóficos são O Mito de Sísifo e O Homem revoltado. “Um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens. Em um bom romance, toda a filosofia passa pelas imagens.” (3)
Duas idéias centrais norteiam a obra de Camus, o absurdo e a revolta. Para ele, o absurdo surge pelo fato de o homem procurar no mundo ordem e racionalidade, mas encontrar somente o irracional e a desordem. Em outras palavras, o

absurdo consiste na incompatibilidade entre um anseio humano de explicação para o mundo e o mistério essencial desse mundo inexplicável, entre a consciência da morte e o desejo de uma impossível eternidade, entre o sonho de felicidade e a existência do sofrimento, entre o amor e a separação dos amantes. (4)

Em Camus, a morte surge como um dos pólos do absurdo, como observa Jean Paul Sartre na introdução de O Estrangeiro, de Camus:

O absurdo fundamental manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direção ao eterno e o caráter finito de sua existência, entre a “preocupação” que é a sua própria essência e inutilidade de seus esforços. (5)

Sartre
Não é outra coisa o que ocorre em A Peste. Os infortúnios de Oran lançam os personagens numa roleta da russa. As ações preventivas parecem não frear a doença e, assim, preservar a vida. Além disso, há um descompasso entre a busca da felicidade e o sofrimento real, o desejo de amar e a solidão da doença, o sopro de vida e o odor sufocante dos cadáveres.

No outro grande romance de Camus, O Estrangeiro, o absurdo da existência é a mola-mestra que conduz a história de Meursault. Indiferente à ordem do mundo, ele mata, sem justificativa, dois árabes numa praia. Condenado, declara apenas que cometeu os assassinatos “por causa do sol”. Não tenta provar inocência, pois se defender representaria aceitar as regras de um jogo que recusa. É um estrangeiro entre os próprios homens, “um desses terríveis inocentes que constituem o escândalo de uma sociedade porque não aceitam as regras do jogo.”(6)

Se em O Estrangeiro Camus concentra o absurdo no indivíduo, em A Peste ele transpõe as lentes para o absurdo coletivo. Mas em ambos os casos manifestam-se as marcas do absurdo, como a gratuidade – da vida, da morte, dos acontecimentos – e a irracionalidade do mundo.

O homem do absurdo não se suicidará. Pôr fim à própria vida eliminaria o divórcio com o mundo, mas não resolveria o absurdo, pois este é uma condição – e aqui entramos no outro grande tema de Camus, a revolta. A Peste é o exemplo da revolta metafísica de que fala O Homem revoltado, livro que sistematiza o pensamento político do autor. A revolta metafísica é definida por Camus como o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua condição e contra toda a criação; é a cumplicidade no absurdo. “O mal que apenas um homem sentia torna-se uma peste coletiva” (7). Manifesta-se assim a contradição entre desejo de durar e o destino de morte do homem, como aponta Manuel da Costa Pinto:

Assimilando a revolta ao absurdo, Camus afasta-se de saída de qualquer solução para o impasse. Pois, assim como o homem absurdo rola sua pedra pela encosta da montanha, o revoltado retira de seu próprio sentimento as condições de vivê-lo sem trair essa existência que tragicamente deverá aceitar.(8)


Para Camus, o sentimento de revolta estreita os laços de fraternidade:

A solidariedade dos homens se fundamenta no movimento de revolta e esta, por sua vez, só encontra justificação nessa cumplicidade. (...) Para existir, o homem deve revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre em si própria e no qual os homens, ao se unirem, começam a existir. (9)

Alguns personagens d’A Peste ilustram a comunhão na revolta. A começar pelo protagonista, o médico Bernard Rieux, narrador da história. É um homem preocupado com o próximo. Não mede esforços para conter a doença, mesmo sabendo das limitações de uma luta inglória. Privilegia o bem comum e a coletividade, a ponto de suportar calado o drama pessoal de se manter à distância da esposa, que, enferma – não pela peste –, é tratada em outra cidade.

À volta de Rieux forma-se um pequeno grupo de colaboradores, como Rambert, Tarrou e Grand, homens unidos pele peste e que aprenderam a compartilhar angústias, desejos e temores. É em torno de personagens como esses que o médico conduz sua crônica, como ele mesmo define o relato.

Relato que não esconde os momentos de dúvidas e fraquezas do protagonista, mas também demonstra a lucidez de Rieux ao observar a desordem do mundo. Ele sabe que estão que todos mergulhados no absurdo coletivo e que é preciso aceitar a condição do absurdo, para então suportá-lo. Mas aceitar não significa jogar a toalha, pois devemos viver intensamente a vida que nos é reservada. “O homem revoltado é aquele que enfrenta seu próprio absurdo”. (10)

Muitos moralistas novos de nossa cidade diziam então que nada servia para nada e que era preciso cair de joelhos. E Tarrou, Rieux e os amigos podiam responder isto ou aquilo, mas a conclusão era sempre o que eles sabiam: era preciso lutar, desta ou daquela maneira e não cair de joelhos. Toda a questão residia em impedir o maior número possível de homens de morrerem e de conhecerem a separação definitiva. Para isso, havia um único meio – combater a peste. Esta verdade não era admirável, era apenas conseqüente. (11)

Nessa luta não há heróis. Mais importante que atos de bravura está a felicidade, que deve ser buscada a todo custo. Para realçar literariamente essa posição, Camus serve-se de um anti-herói, o já citado Grand, um modesto funcionário municipal que se satisfazia em ser útil nas batalhas miúdas do dia-a-dia.

Sim, se é verdade que os homens insistem em propor-se exemplos e modelos a que chamam heróis, e se é absolutamente necessário que haja um nessa história, o narrador propõe este herói insignificante e apagado (Grand) que só tinha um pouco de bondade no coração e um dilema aparentemente ridículo. Isso dará à verdade o que é devido, à adição de dois e dois o seu total de quatro, e ao heroísmo o lugar secundário que lhe cabe, logo depois, e nunca antes, da exigência generosa da felicidade. Isto dará

também a esta crônica seu caráter, que deve ser o de uma relação feita com bons sentimentos, isto é, sentimentos que nem são ostensivamente maus nem exaltadores do espetáculo. (12)


Personagem onipresente

A exaltação da felicidade dá a chave para se compreender o peso simbólico da morte em A Peste. Insuperável e em diferentes formas, como a velhice ou a doença, a morte impede a felicidade integral do ser humano. Não é só em A Peste que Camus aborda a questão. O medo de morrer é expresso em outros livros, como L’Envers et I’Endroit, coletânea de cinco textos que discorrem sobre velhice, religião e morte.

Alguns fatores explicam a correlação entre felicidade e morte em Camus. Em primeiro lugar, o fato de o escritor se situar no contexto da literatura existencialista da metade inicial do século passado. Esta vertente se dedicou a “descrever situações humanas em que mais se notam os traços da problematicidade radical do homem, sublinhando assim suas vicissitudes menos respeitáveis e mais tristes, pecaminosas ou dolorosas, e também a incerteza da ação humana” (13). Uma forte característica dessa linhagem é o ateísmo. E onde não há Deus, tudo se resume aos bens do mundo.

Isso explica a redescoberta da vida em A Peste e as transformações na forma como os habitantes de Oran se relacionam, fortalecendo os laços entre casais esquecidos do amor e entre aqueles que provaram na carne a dor da separação.

Na filosofia moderna, há reflexões sobre o impacto que o reconhecimento da morte provoca no ser humano. Isso aparece, por exemplo, na chamada filosofia da vida, particularmente com Dilthey. Para o pensador,

a relação que caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser é a relação entre vida e morte porque a limitação de nossa existência pela morte é decisiva para a compreensão e avaliação da vida. (14)

Essa nova postura mediante a ameaça da morte também se relaciona com as teorias heideggerianas. Existencialista, o filósofo alemão considerou a morte como uma possibilidade existencial, como o fim do Dasen (“ser aí”), ou seja, do Ser no mundo, e não como término da existência como Ser. O Dasein está sujeito ao tempo (Zeit). A morte então é o fim do Ser no tempo. Dessa maneira, o homem como Ser no tempo é aniquilado com a morte, mas na condição de Ser em Si-Mesmo permanece Ser (Sein). Como aponta Abbagnano, ao comentar a posição de Heidegger, a morte

é a possibilidade absolutamente própria porque diz respeito ao próprio ser do homem(...) É apenas no reconhecer a possibilidade da morte, no assumila(sic) como decisão antecipadora que o homem encontra seu ser autêntico. (15)

Ao se entender a morte como possibilidade, a compreensão de seu significado advém de sua antecipação emocional, a angústia. Segundo Heidegger, a “angústia é a situação emotiva capaz de manter aberta a contínua e radical ameaça que sai do ser mais íntimo e isolado do homem.”(16)

Heidegger
Todas essas relações com Camus são factíveis. Em A Peste, no entanto, convive simultaneamente uma outra simbologia. Deixando de lado a análise existencial a respeito da morte concreta, o romance sugere também a visão da morte o término de um ciclo que permite o nascimento de outro. Perto do desfecho do livro, Camus faz referências ao anseio de recomeço que acalentava os moradores da cidade com o fim da peste. Uma passagem bem elucidativa dessa idéia – e também da valorização das relações humanas em meio ao terror – é o momento em que Rieux e Tarrou, já com a epidemia controlada, vão ao cais tomar um banho de mar em “prol da amizade” (17). A imagem do mar reforça a idéia de purificação depois da tempestade.

Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarrou dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava de esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar (18)

Fazia-se mesmo necessário um novo começo, mas certamente não seria o último, porque o “bacilo da peste não morre” (19). Adormece, e então renasce. Não morre porque é o símbolo do absurdo, essa sensação de mal-estar que acompanha o homem ao longo da existência.
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Notas bibliográficas

1. Albert Camus, “Carta de Albert Camus a Roland Barthes”, em www.cadernosdecamus.blogspot.com
2. Albert Camus, A Peste, p.8.
3. Albert Camus, “A Náusea, de Jean Paul Sartre”, em A Inteligência e o cadafalso, p 133.
4. Abril Cultural, “Vida e obra”, em edição reunida de O Estrangeiro e O Estado de sítio, p.11.
5. Jean Paul Sartre, “Introdução” de O Estrangeiro, p. 7.
6. Idem, p.13.
7. O Homem revoltado, p. 35.
8. Manuel da Costa Pinto, Albert Camus – um elogio do ensaio, p. 182.
9. Albert Camus, O Homem revoltado, p. 34.
10. Vicente Barreto, Camus – vida e obra, p. 53.
11. Albert Camus, A Peste, p. 94.
12. Idem, p. 97.
13. Nicola Abbagnano, História da filosofia, volume 12, p. 47.
14. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 684.
15. Abbagnano, História da filosofia, p. 58 e 59.
16. Idem.
17. Albert Camus, A Peste, p.177.
18. Idem, p. 179.
19. Idem, p. 213.


Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 2000.
____________. História da Filosofia, vol. 12. Lisboa, Editorial Presença, 2001.
BARRETO, Vicente. Camus – vida e obra. São Paulo, Paz e Terra, s/d.
CAMUS, Albert. “Carta de Albert Camus a Roland Barthes”, em
www.cadernosdecamus.blogspot.com. São Paulo, 24-01-2004.
____________. O Estrangeiro. Lisboa, Edição livros do Brasil, s/d.
____________. O Estrangeiro. São Paulo, Abril Cultural, 1982.
____________. O Homem revoltado. Rio de Janeiro, Record, 2003.
____________. A inteligência e o cadafalso e outros ensaios. Record, 2002.
____________. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2004.
____________. A Peste. Record. Rio de Janeiro, Record, s/d.
____________.A Queda. Record. Rio de Janeiro, Record, 2002.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 1998.
ROLLEMBERG, Marcello. “A inteligência e a moral”. Jornal da USP. São Paulo, 7 a 13 de setembro de 1998.
SARTRE, Jean Paul. “Introdução” de O Estrangeiro. Lisboa, Livros do Brasil, s/d.
PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus – um elogio do ensaio. São Paulo, Ateliê Editorial, 1998.

10 comments:

Anonymous said...

"Vai leva deix paus!"

Abs,

Dubes

Clayton Melo said...

Variações enigmáticas:
Camus X Aracy de Almeida

mendez_oliveira@yahoo.com.br said...

Parabéns pelo belíssimo ensaio, muito esclarecedor.Gostaria de publicá-lo em meu blog para melhor esclarecimento de colegas do curso de letras que, como eu, estão lendo Camus.
meu blog é culturadetravesseiro.blogspot.com
Abraços,
Angela Oliveira

Lilian said...

Estou lendo o remance e seu ensaio foi esclarecedor.

Abraços,
Lilian

Clayton Melo said...

Oi, Lilian. Fico muito feliz que te nha sido esclarecedor. E, quanto mais o tempo passa, mas este livro continua forte e vivo em minha cabeça. Até mais!

Camila Matos said...

Muito bom seu ensaio. Eu estou lendo o livro e um outro ponto que me chamou atenção foi o cuidado com a escolha das palavras a fim de se expressar aquilo que está contido no pensamento....Enfim, é uma verdadeira obra de arte.

Inã Cândido said...

Parabéns! Deixei pra ler o seu post depois que tinha terminado o livro. Essa sua resenha ajudou muito a refletir acerca das obras de Camus.

Abraços.

Anonymous said...

Sem dúvida que A Peste é um grande romance, mas interrogo-me sobre o destino dos argelinos que vivem em Oran. Será que eles não interessam a Camus? Só é importante a situação dos franceses?
José Cunha

Unknown said...

Clayton, muito boa sua análise de A Peste. As referências filosóficas foram esclarecidas e relacionadas. Mas senti falta de uma dedicação maior ao estilo do próprio romance. É verdade que Albert Camus está mais preocupado com os efeitos filosóficos do conteúdo do romance, porém o estilo e a forma também podem dizer muito sobre a obra. Abraços, Eduardo.

Anonymous said...

Lido em dezembro de 2016: leitura emblemática para fechar o ano e enfrentar o próximo. Parabéns, ótima resenha.